Ensaio - "Um Crime Americano" e "Megan is Missing": violência e desrespeito
Por Pedro de Souza
Um Crime Americano (O'Haver, 2007) e Megan is Missing (Goi, 2011) são dois filmes estritamente diferentes. Enquanto o primeiro possui um orçamento ligeiramente maior e conta com diversas estrelas em ascenção na época, o segundo é independente e com baixíssimos investimentos. O filme de Tommy O'Haver foi lançado diretamente na televisão e construiu um certo público ao longo dos anos, por outro lado, o longa de Michael Goi ganhou notoriedade quando, dez anos depois, explodiram nas redes sociais vídeos de reações à produção.
Contudo, a substância de ambos é bem próxima. Se apresentam como filmes de suspense focados em crimes extremamente violentos cometidos contra adolescentes, e que têm como um dos enfoques os momentos de desespero vividos. Nesse aspecto, a diferenciação mais notória é que Um Crime Americano conta uma história real, preservando inclusive os nomes verdadeiros, enquanto Megan is Missing é ficcional, porém se inspira em diversos casos reais de sequestros, abusos e homicídios.
Mas, em que momento os dois se cruzam? E por que falar dos dois conjuntamente? Para responder isso, é essencial um panorama geral de ambas as obras.
Como eu disse, Um Crime Americano é baseado em fatos reais. No caso, na tortura e homicídio de Sylvia Likens no ano de 1965, quando contava com dezesseis anos de idade, por parte de Gertrude Baniszewski, com a ajuda de seus outros filhos e vizinhos, após a mulher ficar encarregada por cuidar de Sylvia e de sua irmã, em decorrência de um abandono paterno.
Megan is Missing é um mockumentary em formato found footage — traduzindo, um documentário falso que simula se tratar de vídeos reais encontrados, semelhante a A Bruxa de Blair (Sánchez; Myrick, 1999) — no qual uma menina de quatorze anos chamada Megan desaparece após um encontro, levando a sua melhor amiga Amy a tentar ajudar nas investigações, e ela acaba sumindo também.
Já adianto uma opinião própria acerca dos dois filmes: acho ambos asquerosos e profundamente desrespeitosos, por motivos diferentes, porém com um eixo temático em comum: a abordagem fetichista e inconsequente da violência.
Idealmente, o cinema não pode ser analisado com base em aspectos de fora da própria obra. Entretanto, essa visão significa um total afastamento da arte do contexto em que ela surge, e ignora que os filmes se situam em uma dialética de interpretar a realidade e produzir a obra, em que essa mesma obra irá ser usada para interpretações futuras. Pegando o caso de Um Crime Americano, o diretor dá sua percepção do ocorrido com Sylvia, e essa percepção cria um novo complexo de produção de sentido sobre o caso.
Toda a ideia de "baseado em fatos reais" ainda é pouco madura em uma arte nova como o cinema. Até hoje, ela é a arte mais capaz de causar a assimilação com a realidade, então, mesmo que a trama do filme de O'Haver busque (na maior parte do tempo) falar da brutalidade do crime, a forma com que ele escolhe fazer isso é totalmente contraditória.
A toda hora eu lembrava de "A Abjeção", de Jacques Rivette, especialmente de uma frase: "o realismo absoluto, ou aquilo que pode tomar seu lugar no cinema, é aqui impossível; toda tentativa nessa direção é necessariamente inacabada ('logo imoral'), toda tentativa de reconstituição ou de ou de maquiagem derrisória e grotesca, toda aproximação tradicional do 'espetáculo' deriva do voyeurismo e da pornografia". É isso que senti vendo o diretor tentar replicar a tortura de Sylvia de maneira pretensamente realista, e, ainda por cima, de um modo que pudesse vender mais fácil, mudando diversos aspectos da história original para torná-la mais suportável ao público, e amenizando a culpa de alguns envolvidos, a fim de gerar uma empatia por eles, em prol da narrativa.
Assim, o apelo ao realismo acaba transformando um doloroso caso real em espetáculo. Com Megan is Missing, talvez seja até pior.
No filme de Michael Goi, há uma pretensão de conscientizar sobre os perigos que correm as crianças e adolescentes. Intencionalmente ou não, isso acaba se tornando um manto para esconder um retrato fetichista sobre o assunto. A narrativa passa por vários trechos de sexualização de adolescentes, um relato de abuso infantil com uma insinuação de que a vítima gostou e culmina em meia hora de exploração minuciosa de violências dos mais variados tipos contra uma menina de quatorze anos. Não é sobre conscientização, mas sobre uma doentia vontade de ver as atrizes, uma com dezessete anos à época das filmagens, que ocorreram em 2006 (não há informações sobre a idade da outra), em situações grotescas de sadismo sexual.
Essas duas produções são apenas sintomas de um problema muito maior: a visão de que a forma cinematográfica se submete ao conteúdo. Então, contar uma história e passar uma mensagem bastaria. Dizer que tortura e abuso são ruins bastaria. Mas não basta; a arte é maior do que isso, e quaisquer mensagens são inúteis se a forma a distorce, e pior ainda é quando a forma vai em direção a reafirmar aquilo que o filme pretendia repudiar. Respondendo àquela pergunta do início do texto, é isso que une Um Crime Americano e Megan is Missing, e pode ser resumido em pura abjeção.