Texto por: Luís Guilherme Freza
É uma deliciosa coincidência que Ficção Americana tenha sido distribuído pela Amazon MGM Studios, o que faz com que a primeiríssima imagem que vemos em tela seja a inscrição do clássico logo da Metro-Goldwyn-Mayer: “art for art’s sake”, ou “ars gratia ars” (“arte pela arte”). Nisso que sempre esteve ali como autoindulgência para introduzir décadas de filmes anestésicos de entretenimento barato, há agora algo que vem ser a coroação da ironia para quem julga ser o filme de Cord Jefferson um filme de “crítica social”.
Para começarmos a falar disso, é necessário partir do dado mais fundamental que poderia haver no filme e entendermos o que significa a palavra “ficção” (fiction) que preenche seu título. Um dos maiores e mais comuns erros que alguém, ao estudar narrativas, poderia cometer, é tomar “ficcional” e “fictício” como sinônimos. Desculpe abalar suas estruturas da realidade, possível caro leitor, mas “ficcional” não designa uma mentira, uma mirabolância sinteticamente fabricada, como seu duplo “fictício” o faz.
Em verdade, a ficção é a única coisa no mundo – excentuando-se Deus, que está fora do mundo, justamente porque criou este mundo como uma ficção para si – que não pode mentir. Isso porque é a única forma de discurso que não depende do factual, da história, de seu tempo e espaço, isto é, da ligação a dados exteriores – estando, pois, além das categorias de “verdade” e “mentira”. Ou, como diria Nietzsche, além do bem e do mal. A ficção existe em si e por si, dentro de seu próprio universo, suas próprias regras, seu próprio sistema.
A ficção não existe apenas na poesia (entendida como trabalho de criação, poiesis, que englobaria a literatura, o cinema e outras artes imaginativas), embora esta seja seu lugar privilegiado. Roland Barthes pensava a ficção como um “falar”. Sistemas ideológicos também são falares, ficções, pois instauram e submetem tudo às suas premissas, seus objetivos, seus efeitos. Diria Barthes que “cada ficção combate pela hegemonia”. É por isso que a ficção poética é a única substituta perfeita para um sistema ideológico, para não permitir que ele trague toda a sociedade em seu determinismo. Novamente para o autor francês, sendo uma ficção, cada sistema ideológico é um romance –
“mas romances clássicos, bem providos de intrigas, crises, personagens boas e más (o romanesco é coisa totalmente diversa: um simples corte instruturado, uma disseminação de formas: o maya).” (Roland Barthes, O prazer do texto p. 37).
O romanesco, a poesia, é aquele que rompe a continuidade na transmissão de uma mensagem de pessoa A (autor) para pessoa B (receptor) através de um código e um canal. Dissociando seus elementos, disseminando essas formas, promove o livre jogo da imaginação e da sensibilidade no qual ocorre a experiência estética.
Isso é importante para entendermos, primeiramente, que o dado crítico que serve de mote ao filme insere-se em um debate muito maior que o da construção de caricaturas do povo negro e da necessidade que a elite, a sociedade branca, a burguesia americana, ou qualquer referencial pós-século XVIII assim, tem dessas caricaturas. É um debate que permeia o desenvolvimento da teoria e da crítica literária desde muito antes: o “art for art’s sake” contra o “art for society’s sake”. No filme, o escritor Thelonious Ellison, ou apenas “Monk”, tem dificuldades em vender seus livros para as editoras porque elas apenas querem publicar o estereótipo do autor negro: histórias sobre racismo, marginalidade social, criminalização... Tais histórias são justificadas muitas vezes com os conhecidos adjetivos “necessária” e “chocante” por quem avalia, não conseguindo encontrar um adjetivo que fale sobre a própria obra em sua construção e não sobre sua recepção ou função social.
Em uma cena, Monk chega a uma livraria e, ao perguntar por seus livros, encontra-os na prateleira de “Estudos afro-americanos”. “Eles não têm nada a ver com estudos afro-americanos, são apenas literatura”, diz ao atendente. Apenas literatura (for it’s sake). A legenda do filme no Prime Video nos traduz como “apenas ficção”, muito apropriado. A ficção americana é a ficção que o sistema progressista construiu para si, de submeter o valor de todos os autores negros a um único critério extrínseco à literatura, de criar um sistema ideológico para justificar seu próprio racismo, obter a purgação necessária e, sobretudo – como historicamente se mostra nos americanos –, achar que devem resolver os problemas do mundo. É a ficção dos “escolhidos”, ficção que combate pela hegemonia.
Qual poderia ser a maneira de o filme se contrapor a essa ficção senão propondo integralmente uma outra? Como se poderia clamar por “apenas ficção” senão fazendo “apenas ficção”? Por isso a grata surpresa é que o filme de Cord Jefferson é muito menos uma sátira que uma dramédia que se sustenta sobre sua própria dinâmica interna. Os personagens e a estrutura o mostram. Criticou-se como hipocrisia o fato de ser a família de Monk uma de classe média-alta, com irmãos médicos, com uma empregada que trabalha há anos na casa materna. O crítico americano Armond White até cita em seu texto as palavras de Joe Biden sobre Obama para fazer a analogia: “articulado e claro e limpo”. Com a escusa óbvia de que, exigindo o contrário disso, apenas se está caindo na exigência pelo próprio estereótipo do negro que a ficção americana coloca, devemos perceber essa típica família de classe média-alta americana como uma base para construir a nova ficção americana. Para isso, o que seria melhor que um tipo, o estereótipo geral clássico, uma família que em nada se destaca para uma abertura social que não seja pela falta de dinheiro para cuidar da mãe com Alzheimer e que pode viver seus próprios dramas internos clássicos de uma dramédia?
Há aqui um deslocamento, uma disseminação. O protagonista do livro Erasure, de Percival Everett, que serviu de base ao filme, expõe em seu próprio nome seu desarranjo em relação à sociedade e a seus próprios pares: seu desarranjo em relação à outra ficção americana. O nome Monk vem de Homem Invisível, de Ralph Ellison, um dos mais importantes romances de autoria negra da literatura americana. O narrador do romance de Ellison conta sua inadequação ao mundo, sua invisibilidade geral, inclusive sua desilusão com os grupos que deveriam lutar pelos direitos dos negros. Cord Jefferson, aqui no filme, livra Monk de uma grande reflexão moral sobre seu caráter individualista e instinto de superioridade, que seria a contramão dessa revolta contra o sistema ideológico (conforme parece haver no livro de Everett) para além de piadas dos irmãos e um momento dramático terno com o irmão gay, outro inadequado. Tudo se volta para a família como seu próprio núcleo estruturante, seu próprio universo de onde todas as problemáticas e todas as (tentativas de) soluções surgem. Ora, não é o que a ficção, em seu caráter mais basilar, faz? Afinal, a questão é que Monk fez o fictício com o livro “Fuck!”: uma mentira, um artifício, que tem que esconder de todos. Qual seria a maneira efetiva de lidar com isso senão abraçando o ficcional?
Há ainda mais deslocamento e disseminação quando percebemos que a maioria dos personagens não cumpre praticamente nenhuma função para além de estar ali para um deleite cômico e dramático desinteressado, para o prazer do texto. A irmã de Monk, que morre por um ataque cardíaco súbito e inexplicado duas ou três cenas depois de sua entrada em cena, praticamente não serve a nada senão para gerar a talvez mais bonita cena do filme, genuinamente triste e engraçada ao mesmo tempo, quando Monk lê diante da família seu testamento repleto de bom-humor. De igual modo, para que serve a empregada e a sub-trama de seu casamento com o antigo pretendente? A maioria das piadas não são sobre a piada de fato de Monk com o lançamento do livro “Fuck!”, mas situacionais, sobre os conflitos, vícios e implicâncias da família em sua convivência íntima.
E que deleite: tudo termina sem se resolver. Não há lição alguma. Não há consequência alguma sobre a ação de Monk. Não há uma purgação da sociedade americana, da ficção americana primeira. A outra ficção toma lugar integral. Se aquela é bem provida de crises, personagens completos, tramas completas, como disse Barthes, esta é apenas um corte instruturado, uma disseminação de formas. E termina de fato como isso: a finalização é uma disseminação de possibilidades e cenas para o filme. Enfim,
“o prazer do texto: qual o simulador de Bacon, ele pode dizer: jamais se desculpar, jamais se explicar. Nunca ele nega nada: “Desviarei meu olhar, será doravante a minha única negação” (Roland Barthes, O prazer do texto, p. 6).
Nota: 3,5/5
Fica técnica:
Nome Original: American Fiction
País: EUA
Ano de lançamento: 2023
Direção: Cord Jefferson
Disponível no Prime Video.